Araucaria 2022/3 N° 51

Couverture de S_ARAU_051

Article de revue

Solidariedade ambiental: entre mudanças climáticas e desigualdade

Pages 373 à 393

Notes

  • [1]
    Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito e em Ciência Política e da Faculdade de Direito da UFPel. Pós Doutor (PUCRS). Doutor (UNISINOS). Entre as publicações, destacam-se: “The role of the fundamental objectives of Brazilian Federal Constitution: the dialectics system-problem” (Rechtstheorie); “A função dos princípios fundamentais do artigo 4.° da Constituição Federal de 1988” (Boletim da Faculdade de Direito Coimbra); “Princípio da solidariedade como critério de aplicação do princípio de proibição de retrocesso social em relação aos direitos sociais” (Scientia Iuris). As publicações podem ser acessadas no Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8341523169751885.
  • [2]
    Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e da Faculdade de Direito da UFPel. Doutora em Direito pela Universitat de Girona. Pesquisadora Posdoutoral Maria Zambrano, Universitat de Barcelona. Entre as publicações, destacam-se: “Direitos da natureza e acesso à justiça: a ampliação dos atores legitimados em ações coletivas para uma justiça socioambiental” (Revista Direito em Debate); “A solidariedade intergeracional ambiental e o processo estrutural como instrumentos para a contenção do estado de coisas inconstitucional ambiental (Revista Catalana de Dret Ambiental); e “Estudo das condutas de aplicação do desenvolvimento sustentável por comunidades quilombolas de Piratini” (Revista Veredas do Direito). As publicações podem ser acessadas no Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2979973414270206.
  • [3]
    Tempestades tropicais, inundações, tsunamis, tornados, ondas de calor, seca, nevasca, entre outros.
  • [4]
    Mudança do clima significa uma mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e que se some àquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis (artigo 1º, I da Convenção sobre Mudança Climática de 1992). Além da referida Convenção, dois outros instrumentos jurídicos internacionais fazem frente ao combate do fenômeno das mudanças climáticas: o Protocolo de Kyoto de 1997 e o Acordo de Paris de 2015.
  • [5]
    Uma situação em que ação urgente é necessária para reduzir ou interromper as mudanças climáticas e evitar danos ambientais potencialmente irreversíveis. O Parlamento Europeu, utiliza-se da designação emergência climática ao considerar, dentre outros fatores, que a situação exige a adoção de medidas imediatas e ambiciosas para limitar o aquecimento global a 1,5°C, a fim de evitar uma perda maciça de biodiversidade (Parlamento Europeu 2019).
  • [6]
    Mitigação refere-se à redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) para evitar ou reduzir a incidência da mudança do clima e adaptação é a redução dos efeitos danosos e busca por possíveis oportunidades.
  • [7]
    Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação – Grifos nossos.
  • [8]
    Vide: Massaú, 2016: G. Massaú, O princípio republicano constituinte do mundo-da-vida do Estado constitucional cosmopolita (Unijuí, 2016).
  • [9]
    John Rawls (2002) considera justa a sociedade em que todos os valores sociais, tais como, liberdade, igualdade, dignidade, direitos, etc., são distribuídos de maneira equânime.
  • [10]
    Vide gráfico em: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes. Consulta em 03.03.2021.
  • [11]
    Segurança climática se refere a manter a estabilidade relativa do clima global, que foi decisiva para a construção da civilização desde o fim do último período glacial – faz doze mil anos – diminuindo significativamente o risco de aquecimento global através de sua mitigação e promovendo a adaptação da sociedade internacional e suas unidades nacionais a novas condições de planeta mais quente e com a existência mais frequente e mais intensa de fenômenos climáticos extremos. (Viola 2008: 183)
  • [12]
    Além do desmatamento, outros crimes ambientais são frequentes na Floresta Amazônica, os quais contribuem sobremaneira para as mudanças climáticas: queimadas, extração e comércio ilegal de madeira, garimpo e mineração ilegais, caça ilegal, crimes contra os defensores da floresta, grilagem de terras, biopirataria, trabalho escravo. Vide: Barroso, Mello 2020: 1270-1276.
  • [13]
    A ADPF 708 foi ajuizada no dia 05 de junho de 2020 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Rede Sustentabilidade (BRASIL, 2020). Em suma, os requerentes narraram atos comissivos e omissivos da União que comprometeriam o adequado funcionamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima), bem como o direito de todos os brasileiros a um meio ambiente saudável. Em suma, objetivou-se a adoção de providências administrativas para a preservação do meio ambiente, bem como a retomada do funcionamento do Fundo Clima. Na decisão sobre a medida cautelar, o Ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que embora tenham optado por propor ação direta de inconstitucionalidade por omissão, “os atos que descrevem na inicial têm tanto natureza comissiva quanto omissiva, atribuíveis à União Federal. Tais atos, em seu conjunto, ensejariam uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental” (BRASIL, 2020).
  • [14]
    O 6º Relatório do IPCC, com lançamento previsto para setembro de 2022, decorre da contribuição de três grupos de trabalho: I – base de ciências físicas (trata da compreensão física mais atualizada do sistema climático e das mudanças climáticas, reunindo os mais recentes avanços na ciência do clima e combinando várias linhas de evidências de paleoclima, observações, compreensão de processos, e simulações climáticas globais e regionais); II – impactos, adaptação e vulnerabilidade e III – mitigação das mudanças climáticas.
  • [15]
    Os Relatórios do IPCC pautam suas constatações em níveis de confiança, que sintetizam o grau de concordância das informações analisadas entres os especialistas. Incluem cinco níveis: muito baixo, baixo, médio, alto e muito alto.
  • [16]
    Para Rammê (2012:9) uma agenda política de justiça climática deve partir das seguintes premissas básicas: (a) a justiça climática é um imperativo ético e suas demandas devem pautar as políticas adotadas; (b) embora numa escala de tempo profunda as mudanças climáticas possam afetar toda a humanidade, atualmente o objeto imediato do risco são os indivíduos humanos que apresentam maior vulnerabilidade social; (c) não há como mitigar as mudanças climáticas sem reduzir a queima de combustíveis fósseis no planeta; (d) as políticas adotadas devem ter uma perspectiva de longo prazo, supra-partidárias, sob pena de não serem eficazes; (e) embora se trate de um problema global, iniciativas locais podem ser bastante eficazes; (f) são os países desenvolvidos que devem adotar as políticas mais amplas voltadas à redução das emissões de gases de efeito estufa, com apoio no princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada.

1. Introdução

1 No ano de 2022 completam-se 200 anos da independência do Brasil de Portugal. Há problemas a corrigir que reverberam do passado, mas horizontes abertos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB). A CRFB é filha de seu tempo, pois reconhece os problemas a serem enfrentados pelo Estado na sociedade brasileira como, por exemplo, a desigualdade, a proteção e a defesa do ambiente por meio da solidariedade. Embora a desigualdade social e o ambiente equilibrado possam parecer objetos de análises distantes um do outro, entrecruzam em vários momentos, principalmente quando dos eventos climáticos de alto impacto e consequente degradação do ambiente.

2 Os eventos adversos [3] das mudanças climáticas [4], principal risco global na atualidade, atingem severamente pessoas situadas em zonas de risco ao ponto de causar mortes, perda de moradia, insegurança alimentar, ademais de prejuízos econômicos de difícil e longa recuperação, o que afeta sobremaneira o incremento da pobreza e o exercício dos direitos fundamentais/humanos. A degradação do ambiente pode, ainda, causar doenças aos submetidos às intemperes do problema, bem como obrigá-los a migrar para locais favoráveis ao desenvolvimento com sadia qualidade de vida. Com efeito, as dramáticas consequências dos fenômenos climáticos resultam ainda mais agudas para as pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade, entre eles as mulheres, os povos indígenas, as crianças, os jovens, as pessoas com deficiência, as comunidades ribeirinhas e os grupos com baixos salários. Em suma, os pobres são os mais afetados por estes fenômenos, sobretudo porque têm um acesso mais limitado aos recursos ambientais e habitam áreas de risco, ou seja, impróprias ao assentamento humano.

3 Decerto, a desigualdade e as mudanças climáticas são os principais problemas que definem a época atual, para o que a solidariedade é um instrumento determinante na distribuição de recursos para a sobrevivência, mas também na responsabilidade que cada um tem de proteger e defender um ambiente saudável de um mesmo espaço vital ocupado por inúmeras individualidades, o Planeta Terra.

4 A dinâmica da solidariedade foi positivada na Constituição como princípio. Isto se deve ao fato de a solidariedade ser inerente ao convívio humano em coletividade e fomentar a redução de desigualdade em ações conjuntas. Se manifesta de forma geral no objetivo fundamental do inciso I do Art. 3° da CRFB e, de forma específica, em outros dispositivos constitucionais, e.g. no Art. 225 da CRFB que traz a solidariedade como uma possibilidade de contenção abstrata dos efeitos adversos ao meio ambiente provocados pela emergência climática [5], a qual incrementa as desigualdades entre as pessoas. Desta forma, a solidariedade perpassa, por expressa previsão constitucional, contornos referentes à solidariedade intergeracional em matéria ambiental.

5 Por sua vez, estudar a Constituição no que concerne à solidariedade ambiental frente à emergência climática – em um Brasil circunscrito em transformações contraproducentes da sua Política Ambiental estabelecidas durantes as últimas décadas – implica reconhecer, bem como aderir a estratégias de mitigação e adaptação [6], a influência deste fenômeno nas desigualdades sociais, para fazer frente ao objetivo fundamental do inciso III do Art. 3° da CRFB. Destarte, a análise abrange a solidariedade ambiental em sua redução das desigualdades das presentes e futuras gerações provocadas pelas mudanças climáticas.

6 O propósito deste estudo é sustentar a observância e aplicação do princípio solidariedade em seu aspecto ambiental frente às mudanças climáticas, como uma contenção do acirramento das desigualdades sociais e consequente pobreza. Utiliza-se o método dedutivo em pesquisa bibliográfica-documental. Parte-se do pressuposto de que a solidariedade e a erradicação da desigualdade são princípios constitucionais que devem ser observados e aplicados na contenção dos efeitos adversos das mudanças climáticas, em dedução ao fato de que a solidariedade ambiental é um possível instrumento para a realização da igualdade, dos direitos fundamentais/humanos e da proteção e defesa do meio ambiente.

2. A Constituição Brasileira de 1988

7 A Constituição é compreendida neste trabalho como um texto jurídico geral e abstrato de hierarquia superior e que, por isto, fundamenta e legitima todo o ordenamento jurídico. Também, a Constituição reflete em seu texto o embate entre as correntes políticas e espelha a cultura e os anseios sociais predominantes na arena política da constituinte e do atual contexto, a partir das suas alterações, da sua efetividade e da sua inefetividade. Contudo, ela espelha a sociedade como forma de dependência mútua objetivando a subsistência (Arendt 2003: 56) interpessoal.

2.1. Poder constituinte: a escolha

8 O texto constitucional é expressão do poder soberano do povo (Art. 1º, parágrafo único da CRFB) que marca um modelo de Estado democrático constitucional, paradigma vigente no pensamento político desde o século XVIII fundado no iluminismo cultural do mundo burguês. Trata-se de alternativa ao poder absoluto do monarca que se consolidou ao longo dos séculos. Destarte, o poder soberano legitima o Poder Constituinte para estabelecer a Constituição a fim de ser o fundamento de todo o ordenamento jurídico (Castaño 2007: 67). Nota-se a passagem da política (Constituinte) para o direito (Constituição). Desta feita, há que se reconhecer a influência de outras dimensões da cultura (sentido amplo) humana no direito (especificamente na Constituição).

9 O Poder Constituinte transita entre a política e o direito, na medida em que o representa e é legitimado pelo soberano. Estabelece as competências de cada órgão do Estado e os direitos e os deveres dos cidadãos que o formam. Há circularidade na medida em que inicia no político e estabelece o jurídico e que restringe o político. Isto só pode ser efetuado por quem tem a competência, ou seja, o Poder para constituir.

10 Por conseguinte, o texto constitucional é o resultado da escolha da maioria em um determinado contexto e momento histórico. Porém, o texto constitucional é projetado para o futuro, é o que indica os objetivos fundamentais (Art. 3° da CRFB) [7], denominados de cláusula de transformação (Bercovici 2005: 36). São normas que estabeleceram políticas de Estado que privilegiam o aspecto social em face do individual. Entre outras funções, têm como finalidade corrigir problemas históricos que são legítimos reflexos da colonização portuguesa. Mesmo com a independência, há exatos 200 anos, o tempo não foi suficiente para ajustar as distorções sociais existentes e persistentes no Brasil. No entanto, atualmente, tem-se cada vez mais o necessário conhecimento sobre as causas da desigualdade e de como se deve agir para reduzi-las, incluídas as mudanças climáticas

11 A opção do Poder Constituinte em estabelecer tais objetivos foi estabelecer diretrizes normativas para transformar o estado de coisas existentes no Brasil. O fato de o Art. 3°, I, da CRFB estabelecer o objetivo de se construir uma sociedade livre, justa e solidária contém o anseio da sociedade brasileira em alterar seu destino de desigualdades, violências, subdesenvolvimento, desequilíbrio ambiental, dentre outros problemas [8] de ordem socioeconômica e socioambiental, tal como o expresso no inciso III do mesmo artigo, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

12 Nessa perspectiva, ambos os incisos do Art. 3° têm habilidade para serem determinantes hermenêuticos motivadores da proteção e defesa do ambiente no espaço da solidariedade ambiental estruturada no artigo 225 da CRFB.

2.2. O modo de incidência do Art. 3° da CRFB

13 O Art. 3° da CRFB possui caráter programático ao impor ao Estado o dever de remover obstáculos e promover ações condizentes aos objetivos fundamentais que institui. As normas contidas neste artigo não geram pretensão jurídica por si só, é preciso incidência concomitante de normas mais específicas relativas ao caso concreto, como por exemplo o Art. 225 da CRFB sobre o direito a um meio ambiente equilibrado.

14 Porém, pode-se classificá-las como normas de alta densidade normativa pelo fato de que independe de ulterior regulamentação do legislador ordinário para produzirem efeitos. Ao contrário, o legislador infraconstitucional não deve regulamentá-las sob pena de restringir as possibilidades de interpretação dos textos legais em face do caso concreto, reduzindo o campo de ação da política (Massaú 2021: 117-119).

15 No caso do princípio da solidariedade, proporciona ao intérprete/aplicador do direito critérios valorativos para estabelecer a decisão diante o caso concreto. Trata-se de um princípio que necessita de determinação do conteúdo a partir do contexto histórico-constitucional axiológico para estabelecer o conteúdo pragmático da situação jurídico-subjetiva (Apostoli 2012: 120) – no caso em estudo a preservação ambiental no relativo à intergeracionalidade face ao fenômeno das mudanças climáticas.

16 A vagueza da norma, embora se possa delimitar sentidos do que é ou não solidariedade, abre diversas possibilidades de compreensão. Nessa amplitude de significados, o intérprete/aplicador do direito pode empregar a discricionariedade para formar a decisão. No entanto, deve-se levar em consideração dois tipos de série ilimitada de significados: 1) aqueles que entre diversos potenciais significados advém, de forma concreta, na expressão linguística do texto constitucional, em conformidade com o contexto no qual há o ato de proferir o significado; 2) o das expressões isoladas de um paradigma abstrato aplicável a uma série ilimitada de casos possíveis (Luzzati 1990: 42-43).

17 Destaca-se que as normas contidas no Art. 3° da CRFB, e.g. o princípio da solidariedade e da redução das desigualdades sociais, possuem função interpretativa na medida em que orientam e complementam o resultado da interpretação sistemática realizada para responder à demanda do caso concreto. Por serem normas constitucionais encontram-se hierarquicamente em um nível superior e possuem força normativa constitucional, por conseguinte, não devem ser ignoradas nem contrariadas.

3. A desigualdade e a solidariedade

18 Com o advento da modernidade, o princípio da igualdade passou a nortear os valores ocidentais. Contudo, os fatos reverberam a estrutura de desigualdades sociais e põem em evidência a solidariedade como forma de amenizá-las. Contemporaneamente, a solidariedade assumiu posição estratégica no direito internacional (e.g., Art. 29, I da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1949), comunitário (e.g., Art. 32, I da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969) e nacional (e.g. Art. 3°, I, e Art. 225 da CRFB).

19 Por sua vez, a redução das desigualdades e a defesa do ambiente assumiram papel imperativo na Agenda 2030 (Nações Unidas, 2015), conjunto de metas para por fim à pobreza, proteger o ambiente e garantir dignidade para as presentes e futuras gerações. Ao fim e ao cabo, o primeiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é a erradicação da pobreza, o décimo a redução das desigualdades e o décimo terceiro o combate à mudança global do clima.

3.1. Desigualdade

20 Os fatores que causam a desigualdade social são diversos, por isto, não cabe citá-los de forma exaustiva (como se fosse possível fazê-lo) e analisá-los. Destaca-se que existem vários fatores que ocasionam a desigualdade, no tempo e no espaço, mas o estudo se pauta na desigualdade que os impactos ambientais causados pelas mudanças climáticas podem ocasionar e incrementar o hiato entre as classes sociais (Beck 2008: 17-20, 32 e 36). Tais desigualdades são decorrentes da interferência humana na dinâmica do ambiente natural. Neste sentido, deve se levar em consideração que as desigualdades sociais também tendem a ser intergeracionais, na medida em que as gerações futuras oriundas da hipossuficiência têm maiores dificuldades de mudar seu nível social.

21 O mundo globalizado contemporâneo tem como característica as distintas medidas de desigualdade entre o espaço internacional e o nacional. As condições de desigualdade em nível internacional são diferentes da dos espaços nacionais (Gava 2021: 54-55), porém há em comum o fato de os ricos enriquecem e os pobres empobrecem. Por conseguinte, aumenta a distância entre estas duas classes sociais (Beck 2008: 11-15, 39-42). Nessa perspectiva, há de assinalar que o meio ambiente é indivisível, um corpo único, que há uma estreita inter-relação entre os Estados nacionais em suas ações e responsabilidades, e que a degradação ambiental atinge com maior impacto os Estados em desenvolvimento que os desenvolvidos.

22 A desigualdade, persistente e aguda, acarreta uma série de problemas tais como o enfraquecimento da democracia, a penúria do direito, a debilidade das oportunidades e a estagnação social, a dominação do mercado e a fragilização das relações de confiança e coesão social (Gava 2021: 25). Os efeitos deletérios atingem as pessoas, grupos e população (Beck 2008: 27) nas suas vulnerabilidades, acarretando dificuldades como acesso a bens básicos, a direitos, à participação política, à mudança de status social, dentre outros. Estas dificuldades são potencializadas pelas mudanças climáticas, na medida em que atinge com maior intensidade os vulneráveis sociais (pobres) incrementando a pobreza.

23 As consequências sociais provocadas pelas alterações no ambiente acentuam a desigualdade entre aqueles que possuem e os que não possuem recursos para enfrentar os eventos adversos. Aos possuidores, não traz maiores dificuldades para se reorganizarem, ao contrário dos hipossuficientes, que necessitam de maior esforço socioeconômico, tendo em conta que já suportavam dificuldades ou incapacidades de se desenvolver com o mínimo necessário para a sobrevivência.

24 O último Relatório do Banco Mundial (2021:128) informa que a Pandemia da COVID-19 intensificou as desigualdades: entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas de todo o mundo passaram fome, ou seja, 161 milhões de pessoas a mais que em 2019. No Brasil, segundo recente pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, em 2019 a proporção de pobres era de 10, 97%, cerca de 23,1 milhões de pessoas. Em setembro de 2020, passou para 4,63% em função da adoção do Auxílio Emergencial em tempos de COVID-19, correspondendo a 9,8 milhões de brasileiros. No primeiro trimestre de 2021, quando da retirada do Auxílio e retomada do Bolsa Família, chegou a 16,1% da população, ou seja, 34,3 milhões de pobres (Neri 2021:8).

25 Um dos fatores capitais na produção da desigualdade são os problemas ambientais. Entre outros, a emergência climática afeta sobremaneira a redução das desigualdades. O Informe do Banco Mundial, Shock Waves (Ondas de choque), estima que para 2030 a emergência climática poderia empurrar mais 100 milhões de pessoas à pobreza (Word Bank 2016). Este prognóstico produz consequências no exercício dos direitos fundamentais/humanos, desde a autodeterminação dos povos, à saúde, à alimentação, à água, à moradia, à educação até à própria vida.

26 Ainda, o Informe de avance cuatrienal sobre el progresso y los desafios regionales de la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible em América Latina y el Caribe, destaca como riscos graves com relação à agricultura, a diminuição na produção e na qualidade dos alimentos, o que acarretaria a alta dos preços; quanto à água, a indisponibilidade em regiões semiáridas e dependentes do derretimento de geleiras, além de inundações em áreas urbanas devido às chuvas extremas; quanto à saúde, a propagação de enfermidades transmitidas por vetores; e, com relação à pobreza, diminuição das receitas – principalmente agrícolas – da população vulnerável, com aumento das desigualdades sociais (Cepal, 2019:185).

27 Enfrenta-se a desigualdade, entre outros aspectos, por meio da solidariedade em seu viés de justiça distributiva [9], em razão de se viver em coletividade. Por conseguinte, é estratégico o princípio da solidariedade no Art. 3°, I, in fine, combinado com o inciso III e com o Art. 170, VII, da CRFB para se erradicar e amenizar as diferenças entre os hipo e hipersuficiente no contexto das catástrofes ambientais climáticas, bem como promover o direito a um meio ambiente equilibrado.

3.2. Solidariedade

28 A solidariedade encontra-se constitucionalizada no Art. 3°, I, in fine, da CRFB. Trata-se de um dispositivo constitucional que estabelece objetivos a serem perseguidos pelo Estado brasileiro, a fim de transformá-lo. Destarte, a solidariedade na CRFB é um princípio jurídico que deve vincular o Estado e os indivíduos, incidindo nos casos concretos (Massaú, Bainy 2020: 367). A incidência da solidariedade prevista neste artigo ocorrerá na interpretação das regras e demais princípios condizentes ao caso concreto, pois se trata de uma norma de alta densidade e de caráter hermenêutico. Assim sendo, dará sentido ao que se refere às decisões judiciais e às ações dos Poderes Executivo e Legislativo (Massaú, Bainy 2020: 367-368).

29 A opção do legislador constituinte em prever objetivos fundamentais, especialmente o de tornar a sociedade mais solidária, indica que por de trás há a necessidade de se estabelecer critérios de justiça distributiva, no sentido positivo e negativo. No sentido positivo, a solidariedade exigirá ações que distribuem benefícios proporcionais (em sentido amplo) às pessoas necessitadas. No sentido negativo, a solidariedade evitará que se onerem as pessoas, além de suas capacidades, para que possam satisfazer suas necessidades básicas. Assim, as normas jurídicas, quando estabelecidas, interpretadas e concretizadas, devem levar em consideração critérios de solidariedade entre as pessoas e/ou entidades sociais, tendo como parâmetro medidas que reduzam desigualdades.

30 Há vários tipos de manifestação da solidariedade tais como, e.g., a solidariedade familiar (pequena e grande), a da vizinhança (espacial: vizinho, quarteirão, cidade, país ou pátria), a funcional (colega, ambiente de trabalho e de estudo, companheiro de escola e de trabalho), a de raça e de etnia, a de ideal (religioso, político, filosófico, ideológico), de cultura, de interesse (solidariedade de classe e de ofício) e, por fim, a solidariedade geral entre os seres humanos (Vallauri 1981: 432). Além disso, a solidariedade ambiental para as presentes e futuras gerações, que se examinará no próximo capítulo.

31 A solidariedade pode apresentar classificações em relação à sua fenomenologia e à época. Ao levar em consideração a classificação de Benjamin Constant em relação à liberdade, têm-se a solidariedade dos antigos e a dos modernos. A primeira tem caráter homogêneo e a segunda heterogêneo (Nabais 1999:149). Ao considerar critérios sócio-econômicos tem-se a solidariedade mutualista que está calcada na criação de riqueza comum em matéria de bens, de serviços e de infraestrutura essenciais ao desenvolvimento pessoal; e a solidariedade altruísta baseada na atividade sem contrapartida, onde há apenas um polo beneficiado (Nabais 1999:150).

32 Conforme o poder institucional é possível visualizar dois tipos de solidariedade, a vertical, que se volta para os direitos, e a horizontal, que está ligada aos deveres (Apostoli 2012: 24). A vertical diz respeito ao apoio aos membros da sociedade, principalmente na realização dos direitos sociais ao encargo fundamentalmente do Estado. Ainda, se refere aos direitos fundamentais de terceira geração ou dimensão, que incluem o direito a um meio ambiente equilibrado. A solidariedade vertical encontra-se vinculada ao Estado social, que deve prover o mínimo existencial aos cidadãos em função do grau do desenvolvimento econômico e social assumido pelo Estado. Em essência, ao Estado social é imprescindível garantir aos indivíduos o direito à saúde, à educação, à segurança social (Nabais 1999:150-151), ao meio ambiente sadio, dentre outros.

33 A solidariedade vertical é a responsabilidade do Estado, em termos de exigência constitucional, de concretizar ou fazer que se concretizem prestações sociais a fim de amenizar as adversidades sociais. Neste caso, pode-se mencionar, por exemplo, as normas dos artigos 194, 196, 201, 203, 205, 225, 226 e 227 da CRFB. Se refere ao que se iniciou com a legislação social bismarkiana e consolidou-se nas constituições, ou seja, o estabelecimento de direitos sociais como suporte material que o Estado deve prover aos indivíduos (Nabais 1999:151-152).

34 A solidariedade horizontal refere-se à responsabilidade dos deveres constitucionais e fundamentais que o Estado, como destinatário imediato, necessita concretizar de forma legislativa. É o disposto nos seguintes dispositivos da CRFB: Art. 1°, caput, Art. 5°, XVI, XVII, XVIII, Art. 8, Art. 18, Art. 142 c/c, Art. 143, Art. 197, Art. 205, Art. 229, dentre outros. Também, e simultaneamente, refere-se à responsabilidade que cabe à sociedade civil, compreendida no âmbito de relações entre os indivíduos, entre os grupos e entre as classes sociais. Tais relações se desenvolvem para além da esfera de poder do Estado, possuindo crescente relevo conforme se reduz a capacidade do Estado social de realizar as necessidades de todos os cidadãos. Isso se dá por duas dimensões: i) quando concretizada por meio da atuação espontânea de indivíduos e grupos sociais; ii) ou de forma organizada, por meio da solicitação e empenho da sociedade civil, p.ex., o voluntariado social (Nabais 1999:152-153).

35 A solidariedade constitui várias formas, diretas ou indiretas, de relações humanas. É um valor, uma manifestação de assistência moral que promove o ser humano em grupo ou individualmente, cujo objetivo primordial no plano constitucional é a pretensão de realização da dignidade da pessoa humana por meio do cumprimento dos direitos fundamentais/humanos.

4. A solidariedade ambiental

36 A CRFB é um relevante instrumento de proteção e defesa do meio ambiente no Estado brasileiro e destaca tal proteção em capítulo específico dentro do Título da Ordem Social. O artigo 225 reconhece o direito fundamental a um meio ambiente equilibrado, essencial à qualidade de vida e pertencente às presentes e futuras gerações em autêntico regime de solidariedade, equidade e responsabilidade com a coisa comum. Também, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de preservar e defender o meio ambiente, dever este inserido no princípio de solidariedade/equidade intergeracional ambiental.

4.1. O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado no Estado brasileiro

37 O conceito de meio ambiente deve articular-se sobre os elementos que o integram (solo, água, ar e biodiversidade, patrimônio cultural) e os elementos que, sendo resultado das atividades humanas, são suscetíveis de operar modificações nesse meio (agentes contaminantes ou degradantes). Nesse sentido, a definição deve contemplar a interação entre os recursos ambientais e as atividades humanas que possam causar sua deterioração. Assim, o meio ambiente seria o conjunto de elementos indispensáveis para a sobrevivência dos seres vivos suscetível de modificações pelas ações humanas e, por tanto, merecedor de defesa e proteção jurídica.

38 A era jurídica-ecológica se inicia na década de 70, com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em Estocolmo de 5 a 16 de junho de 1972, que completa meio século neste ano. Os instrumentos adotados nesta Conferência não têm natureza convencional, isto é, não possuem força jurídica vinculante; a Declaração de Estocolmo de 1972 e o Plano de Ação para o Meio Ambiente, encerram um caráter meramente declaratório e de recomendação. No entanto, esta Declaração é o alicerce da posterior e acentuada atividade legislativa internacional e nacional de proteção do meio ambiente, sobretudo no campo constitucional.

39 É de destacar-se que o direito humano a um meio ambiente equilibrado ainda não está acolhido de forma expressa em instrumentos jurídicos internacionais vinculantes, o que não tem sido uma adversidade ao avanço da dimensão jurídica ecológica dos direitos humanos, é dizer, “um ordenamento jurídico que é compatível com os princípios da ecologia e faz honrá-los” e que “requer o desenvolvimento de alguns princípios jurídicos de orientação ecológica que possam começar a traduzir a visão de mundo ecológica em teoria e práticas institucionais” (Capra, Mattei 2018: 41 e 253). Decerto, o direito ao ambiente é um direito humano, posto que de interesse universal, elevando-se à importância principiológica de preocupação comum da humanidade, ou seja, uma responsabilidade comum de todos os Estados (e da coletividade) em defende-lo e preservá-lo em benefício de todos os direitos planetários. Afinal, os danos ao ambiente afetam todo o Planeta, os seres humanos e seus direitos humanos e a natureza e os direitos da natureza.

40 Tal lacuna na lei internacional vem sido completada por algumas organizações internacionais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva Nº 23 (CIDH 2017), reconhece a existência de relação inegável entre a proteção do meio ambiente, os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável, para o que estabelece várias obrigações ambientais aos Estados (CIDH 2017: 22-26). Igualmente, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, em recente Resolução (48/13, 2021), reconhece o direito a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável como um direito humano importante para o desfrute dos direitos humanos.

41 Por outro lado, os direitos constitucionais dos Estados no pós Conferência de Estocolmo, em adesão aos seus 26 princípios, trataram a questão como direito fundamental. É o caso do Estado brasileiro, que concretiza o tema em seu artigo 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações – Grifos nossos.

42 Como está previsto no texto constitucional, trata-se de um direito objetivo. Deste fato, conforme a densificação da norma jurídica que deriva do direito objetivo surge o direito subjetivo que corresponder a obrigação/ dever de outrem. A pretensão, vinculada ao direito subjetivo, consiste na possibilidade, facultada pela norma jurídica, de exigir de outra(s) pessoa(s) determinada(s) o cumprimento do dever jurídico correspondente, valendo-se do aparato coercitivo do direito (Bertoldi, Massaú 2021: 404). Este dever está vinculado à solidariedade ambiental entre gerações e prescreve uma ética de responsabilidade.

43 A política ambiental no estado brasileiro avançou significantemente após o advento, e denominado esverdeamento, da CRFB no ano de 1988. Inclusive, o artigo 170 (condizente à ordem econômica), inciso VI, traz o dever da defesa do meio ambiente. Cabe destacar a criação, nos anos de 1990, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/1988); nos anos 2000, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (Lei 9985/2000), da Agenda 21 brasileira, do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e das várias Políticas Nacionais, como sobre mudança do clima, biodiversidade e recursos sólidos. Nos anos 2010, um dos principais problemas ambientais brasileiros e agente determinante nas mudanças climáticas, o desmatamento da Floresta Amazônica, foi controlado pelo Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm) durante os anos de 2004-2012. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) [10], em 2004 foram desmatados 27.772 km² e em 2012, 4571 km².

44 No tocante ao enfrentamento das mudanças climáticas no Brasil, no ano de 2009 foi promulgada a Política Nacional sobre Mudanças Climáticas, Lei 12.187 (Brasil, 2009), que bem estabelece o princípio solidariedade em seu artigo 3º, inc. I: todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático. Atualmente a Política é objeto de atualização no Congresso Nacional, Projeto de Lei 6539 (Brasil 2019) para adequá-la ao contexto do Acordo de Paris, estabelecendo Contribuições Nacionalmente Determinadas (“NDCs”). Por outro lado, é matéria de emenda constitucional. A PEC 37/2021 (Brasil, 2021) propõe incluir a segurança climática [11] na CRFB nos artigos 5º, sobre igualdade, 170, sobre a ordem econômica e no 225, sobre o direito a um meio ambiente equilibrado.

45 Não obstante a consolidação legislativa e administrativa em matéria ambiental no decorrer destas décadas, há de dar-se importância ao fato de que, a partir de 2019, segundo ano da administração do Presidente Jair Bolsonaro, o Brasil vem sofrendo uma negativa investida na legislação e gestão ambiental laboriosamente alicerçada desde o ano de 1981 sobretudo, com a edição da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6838/1981), amplamente incorporada pelo artigo 225 da CRFB.

46 Segundo dados do projeto Política por Inteiro, de janeiro a dezembro de 2020, houve 593 atos do governo federal relacionados ao meio ambiente. Na classificação por impacto das normas, 57 determinavam reformas institucionais, 32 eram revisões de regulamentos, 32 promoviam flexibilização, 19 desregulação e 10 eram revogações (Observatório do Clima 2021). Com isto, por exemplo, houve um aumento considerável no desmatamento [12] na Amazônia Legal: no ano de 2018 foram desmatados 7.536 km²; no de 2019, 10.129 km²; e no de 2020, o número chegou a 10.851 km² (INPE 2021). Em consequência do desmatamento descontrolado, no ano de 2020, o país lançou 2,18 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, contra 1,98 bilhão em 2019 (Observatório do Clima 2021: 29-30).

47 Dessa maneira, o Estado Brasileiro tem atuado em oposição aos instrumentos jurídicos internacionais e nacionais de proteção do clima, e desconsiderando o fato de que a “floresta desempenha função de grande importância na mitigação do aquecimento global, absorvendo e armazenando dióxido de carbono, por meio da fotossíntese. Como intuitivo, com o desmatamento, ela não apenas deixa de absorver carbono como o libera de volta na atmosfera” (Barroso, Mello 2020:1267).

48 Trata-se, portanto, de um real Estado de Coisas Inconstitucional Ambiental, recentemente mencionado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão 60, então convertida na ADPF 708 [13] (BRASIL, 2020). Assim constou na ementa:

49

DIREITO CONSTITUCIONAL AMBIENTAL. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO GOVERNAMENTAL EM RELAÇÃO AO FUNDO CLIMA E A OUTRAS QUESTÕES AMBIENTAIS. RELEVÂNCIA DA MATÉRIA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO E DE COMPROMISSOS INTERNACIONAIS DO BRASIL. CONVOCAÇÃO DE AUDIÊNCIA PÚBLICA. 1. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão recebida como arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). 2. A mudança climática, o aquecimento da Terra e a preservação das florestas tropicais são questões que se encontram no topo da agenda global. Deficiências no tratamento dessas matérias têm atraído para o Brasil reprovação mundial. 3. A Constituição brasileira é textual e veemente na consagração do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ademais, impõe ao Poder Público o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225). 4. Além de constituir um direito fundamental em si, o direito ao meio ambiente saudável é internacionalmente reconhecido como pressuposto para o desfrute de outros direitos que integram o mínimo existencial de todo ser humano, como a vida, a saúde, a segurança alimentar e o acesso à água. 5. São graves as consequências econômicas e sociais advindas de políticas ambientais que descumprem compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A União Europeia e diversos países que importam produtos ligados ao agronegócio brasileiro ameaçam denunciar acordos e deixar de adquirir produtos nacionais. Há uma percepção mundial negativa do país nessa matéria. 6. O quadro descrito na petição inicial, se confirmado, revela a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural. Vale reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional. 7. Convocação de audiência pública para apuração dos fatos relevantes e produção, na medida do possível, de um relato oficial objetivo sobre a situação do quadro ambiental no Brasil. […] (STF – ADO 60 – DISTRITO FEDERAL – 0094911-17.2020.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 28/06/2020, Data de Publicação: DJe-165 01/07/2020) – Grifos nossos.

50 Este preocupante quadro promove a transgressão de outros tantos direitos fundamentais, pois o direito a um meio adequado é direito fundamental complexo; um dano ambiental, por exemplo, além de lesar o direito a um meio ambiente equilibrado, pode afetar o direito à propriedade, à saúde, à moradia, à alimentação, à vida, entre outros, nas perspectivas presente e futura.

51 Destaca-se, neste contexto, que a estrutura do Direito Ambiental brasileiro deve condicionar-se à premissa da solidariedade ambiental, posto que as lesões ao meio ambiente acarretam consequências que extrapolam o limite temporal das gerações presentes, o que impõe a atenção para o direito das gerações futuras a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como pressuposto à erradicação das desigualdades. É o que se passa a examinar.

4.2. Solidariedade ambiental entre gerações, mudanças climáticas e desigualdade

52 A solidariedade no Direito ambiental é um dever entre os seres humanos e não humanos, um orientador da realização do direito a um meio ambiente equilibrado que atinge a dimensão da solidariedade ambiental. Expressa a necessidade fundamental de coexistência do ser humano em um corpo social, formatando a teia de relações intersubjetivas e sociais que se traçam no espaço da comunidade estatal (Sarlet, Fensterseifer 2017: 91). No contexto socioambiental, imprime a obrigação, das gerações presentes, de diligência transfronteiriça no acesso e uso dos recursos naturais face às gerações futuras.

53 Mateo (1998: 48) sustenta que o princípio da solidariedade tem dupla dimensão: comunitária e intergeracional. Trata-se da solidariedade diacrônica (através do tempo), isto é, a que se refere às gerações do após, aquelas que virão depois de nós, ao contrário da síncrona (ao mesmo tempo), que fomenta as relações de cooperação com as gerações presentes (Milaré 2015: 260).

54 O princípio da solidariedade, também nominado equidade intergeracional, é reconhecido como elemento de fundamentação para uma ética de responsabilidade ambiental, bem como um necessário valor existencial, pautado no cuidado com o outro com vistas a um direito a um meio ambiente saudável (ou menos desequilibrado) presente e futuro. Alcança a perspectiva de garantir a dignidade da pessoa humana para as futuras gerações, afinal, conceber uma responsabilidade em relação a estas, na transmissão de um patrimônio, é fundamentalmente ligar-se à ideia kantiana de humanidade, bem como uma certa dose de simetria e equilíbrio próprio da justiça comutativa (Ost 1995: 338).

55 Dito de outra forma, a equidade intergeracional “se concentra na relação intrínseca que cada geração tem com as outras gerações, passadas e futuras no referente ao uso do patrimônio comum dos recursos naturais e culturais do nosso Planeta” (Weiss 1999: 54 – tradução nossa). Reconhece que “cada geração é, ao mesmo tempo, custodia e usuária de nosso patrimônio comum natural e cultural” (Weiss 1999: 54 – tradução nossa). Também significa “justiça intergeracional no contexto do uso do patrimônio comum de recursos naturais e culturais de nosso planeta” (Weiss 1999: 55 – tradução nossa).

56 Esse panorama estimula, nos direitos e deveres relacionados ao meio ambiente, um teor ético-ecológico de possibilidade de um meio ambiente menos desequilibrado, pautado pelo dever (moral e jurídico) de responsabilidade compartilhada e solidária entre as gerações presentes e para atender os interesses das gerações futuras, no qual as diferenças e dificuldades devem transpor o espaço e o tempo, prevalecendo como valores o respeito com o outro e a dignidade. Tal princípio está contido, por exemplo, no artigo 2º do Acordo de Paris (ONU 2015), que compromete às Partes a refletir sobre equidade e responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Isto retrata a responsabilidade da coletividade pelo legado ambiental destinado às futuras gerações, sob o comprometimento diligente na gestão dos recursos ambientais como um desejo e uma preocupação comum entre gerações.

57 A segunda parte do 6º Relatório do IPCC, realizada pelo Grupo II [14] (IPCC 2022: 36) é conclusivo ao afirmar que regiões e pessoas com restrições ao desenvolvimento têm alta vulnerabilidade às mudanças climáticas (alta confiança [15]). Conforme o Relatório, os hotspots globais de alta vulnerabilidade humana são encontrados particularmente na África Central e Oriental, Sul da Ásia, América Central e do Sul, pequenos estados insulares em desenvolvimento e ártico (alta confiança). Também, prevê 250.000 mortes por ano até 2050 devido ao calor, à desnutrição, à malária e à diarreia, sendo que metade desta mortalidade está prevista no continente africano (alta confiança) (IPCC 2022: 1298).

58 Como pode-se observar, a emergência climática produz desigualdades, incrementa a pobreza e, nesse sentido, exige solidariedade ambiental para uma justiça climática distributiva [16] entre os indivíduos, os estados e as gerações. De fato, a pobreza inibe a capacidade de adaptação às mudanças climáticas e as respostas a estas mudanças podem reduzir e/ou conter a pobreza e a desigualdade, para o que é necessário um programa de adaptação pró-pobres, especialmente nos processos que prejudicam os meios de subsistência, tal é a agricultura, altamente sensível ao clima, o que pode causar insegurança alimentar e, consequentemente, injustiça social. Em suma, as mudanças climáticas contribuem para a pobreza e sua transmissão intergeracional.

59 A solidariedade/equidade intergeracional ambiental coaduna-se com as reivindicações de controle da atual crise ambiental marcada, especialmente, pelo novo Regime Climático (Latour 2020: 10), que se inserem na busca por um Estado de Direito Ambiental com ênfase, justamente, em fomentar a proteção e a defesa do meio ambiente para a satisfação da dignidade ecológica do ser humano presente e futuro e da sobrevivência da natureza, em direção à erradicação das desigualdades que impulsionam a pobreza.

60 Portanto, o princípio da solidariedade/equidade intergeracional, bem assinalado no dever do Estado brasileiro e da coletividade em preservar e defender o meio ambiente, é um relevante instrumento a favor da efetivação do objetivo constitucional de erradicação da pobreza e das desigualdades e da realização do direito fundamental a um meio ambiente equilibrado.

5. Conclusão

61 O equilíbrio do meio ambiente é fundamental para a manutenção da vida humana e das outras espécies no Planeta Terra. Para isto, o direito ambiental cada vez mais se destaca como um direito de viés cosmopolita na medida em que o seu objeto de proteção, o ecossistema Terra, independe de fronteiras locais ou regionais. A emergência climática é o principal desafio a ser enfrentado na atualidade; as mudanças climáticas são uma realidade científica que demanda estratégias de adaptação e mitigação para a contenção do desequilíbrio ambiental e da desigualdade, fundamento da pobreza.

62 Destarte, o desequilíbrio do meio ambiente transpassa a qualidade do local em direção ao global e impacta significantemente a igualdade social. Neste trabalho, buscou-se acentuar a importância da realização da solidariedade como uma estratégia capaz de contribuir na redução das desigualdades sociais, provocadas pelos eventos adversos das mudanças climáticas, e na promoção dos direitos fundamentais/humanos.

63 Nesse sentido, a interpretação e aplicação do princípio da solidariedade ambiental deve incidir conjuntamente na defesa e proteção ambiental e na redução das desigualdades sociais. Esta equação deve levar em consideração o caso concreto e as normas do sistema jurídico que nele devem incidir. Implica à coletividade e ao Poder Público o dever de defesa e proteção do meio ambiente para que as gerações futuras possam usufrui-lo de igual modo que as presentes. Como consequência, sustenta-se a possibilidade de redução das desigualdades sociais e a erradicação da pobreza que, entre outros fatores, são resultado da degradação ambiental protagonizada na atualidade pela emergência climática. Gize-se que os fatores causantes das desigualdades sociais também são intergeracionais, ou seja, a geração futura descendente de grupos hipossuficientes tende a não ultrapassar a linha da pobreza. Assim, se está diante um obstáculo socioambiental e intergeracional, provocado pelo desequilíbrio do ambiente, o qual afeta as perspectivas de igualdade.

64 A solidariedade, portanto, compreendida no plano da Ética e da Moral como a forma de interação entre indivíduos sociais que se ajudam mutuamente e respeitam os direitos uns dos outros, enquanto princípio e objetivo da CRFB, pode ser um eficiente instrumento para a efetivação das disposições constitucionais ambientais (e demais normas) e do objetivo fundamental de erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e regionais e, nesse sentido, promover a realização dos direitos fundamentais/humanos.

Bibliographie

Referências

Notes

  • [1]
    Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito e em Ciência Política e da Faculdade de Direito da UFPel. Pós Doutor (PUCRS). Doutor (UNISINOS). Entre as publicações, destacam-se: “The role of the fundamental objectives of Brazilian Federal Constitution: the dialectics system-problem” (Rechtstheorie); “A função dos princípios fundamentais do artigo 4.° da Constituição Federal de 1988” (Boletim da Faculdade de Direito Coimbra); “Princípio da solidariedade como critério de aplicação do princípio de proibição de retrocesso social em relação aos direitos sociais” (Scientia Iuris). As publicações podem ser acessadas no Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8341523169751885.
  • [2]
    Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e da Faculdade de Direito da UFPel. Doutora em Direito pela Universitat de Girona. Pesquisadora Posdoutoral Maria Zambrano, Universitat de Barcelona. Entre as publicações, destacam-se: “Direitos da natureza e acesso à justiça: a ampliação dos atores legitimados em ações coletivas para uma justiça socioambiental” (Revista Direito em Debate); “A solidariedade intergeracional ambiental e o processo estrutural como instrumentos para a contenção do estado de coisas inconstitucional ambiental (Revista Catalana de Dret Ambiental); e “Estudo das condutas de aplicação do desenvolvimento sustentável por comunidades quilombolas de Piratini” (Revista Veredas do Direito). As publicações podem ser acessadas no Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2979973414270206.
  • [3]
    Tempestades tropicais, inundações, tsunamis, tornados, ondas de calor, seca, nevasca, entre outros.
  • [4]
    Mudança do clima significa uma mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e que se some àquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis (artigo 1º, I da Convenção sobre Mudança Climática de 1992). Além da referida Convenção, dois outros instrumentos jurídicos internacionais fazem frente ao combate do fenômeno das mudanças climáticas: o Protocolo de Kyoto de 1997 e o Acordo de Paris de 2015.
  • [5]
    Uma situação em que ação urgente é necessária para reduzir ou interromper as mudanças climáticas e evitar danos ambientais potencialmente irreversíveis. O Parlamento Europeu, utiliza-se da designação emergência climática ao considerar, dentre outros fatores, que a situação exige a adoção de medidas imediatas e ambiciosas para limitar o aquecimento global a 1,5°C, a fim de evitar uma perda maciça de biodiversidade (Parlamento Europeu 2019).
  • [6]
    Mitigação refere-se à redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) para evitar ou reduzir a incidência da mudança do clima e adaptação é a redução dos efeitos danosos e busca por possíveis oportunidades.
  • [7]
    Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação – Grifos nossos.
  • [8]
    Vide: Massaú, 2016: G. Massaú, O princípio republicano constituinte do mundo-da-vida do Estado constitucional cosmopolita (Unijuí, 2016).
  • [9]
    John Rawls (2002) considera justa a sociedade em que todos os valores sociais, tais como, liberdade, igualdade, dignidade, direitos, etc., são distribuídos de maneira equânime.
  • [10]
    Vide gráfico em: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes. Consulta em 03.03.2021.
  • [11]
    Segurança climática se refere a manter a estabilidade relativa do clima global, que foi decisiva para a construção da civilização desde o fim do último período glacial – faz doze mil anos – diminuindo significativamente o risco de aquecimento global através de sua mitigação e promovendo a adaptação da sociedade internacional e suas unidades nacionais a novas condições de planeta mais quente e com a existência mais frequente e mais intensa de fenômenos climáticos extremos. (Viola 2008: 183)
  • [12]
    Além do desmatamento, outros crimes ambientais são frequentes na Floresta Amazônica, os quais contribuem sobremaneira para as mudanças climáticas: queimadas, extração e comércio ilegal de madeira, garimpo e mineração ilegais, caça ilegal, crimes contra os defensores da floresta, grilagem de terras, biopirataria, trabalho escravo. Vide: Barroso, Mello 2020: 1270-1276.
  • [13]
    A ADPF 708 foi ajuizada no dia 05 de junho de 2020 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Rede Sustentabilidade (BRASIL, 2020). Em suma, os requerentes narraram atos comissivos e omissivos da União que comprometeriam o adequado funcionamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima), bem como o direito de todos os brasileiros a um meio ambiente saudável. Em suma, objetivou-se a adoção de providências administrativas para a preservação do meio ambiente, bem como a retomada do funcionamento do Fundo Clima. Na decisão sobre a medida cautelar, o Ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que embora tenham optado por propor ação direta de inconstitucionalidade por omissão, “os atos que descrevem na inicial têm tanto natureza comissiva quanto omissiva, atribuíveis à União Federal. Tais atos, em seu conjunto, ensejariam uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental” (BRASIL, 2020).
  • [14]
    O 6º Relatório do IPCC, com lançamento previsto para setembro de 2022, decorre da contribuição de três grupos de trabalho: I – base de ciências físicas (trata da compreensão física mais atualizada do sistema climático e das mudanças climáticas, reunindo os mais recentes avanços na ciência do clima e combinando várias linhas de evidências de paleoclima, observações, compreensão de processos, e simulações climáticas globais e regionais); II – impactos, adaptação e vulnerabilidade e III – mitigação das mudanças climáticas.
  • [15]
    Os Relatórios do IPCC pautam suas constatações em níveis de confiança, que sintetizam o grau de concordância das informações analisadas entres os especialistas. Incluem cinco níveis: muito baixo, baixo, médio, alto e muito alto.
  • [16]
    Para Rammê (2012:9) uma agenda política de justiça climática deve partir das seguintes premissas básicas: (a) a justiça climática é um imperativo ético e suas demandas devem pautar as políticas adotadas; (b) embora numa escala de tempo profunda as mudanças climáticas possam afetar toda a humanidade, atualmente o objeto imediato do risco são os indivíduos humanos que apresentam maior vulnerabilidade social; (c) não há como mitigar as mudanças climáticas sem reduzir a queima de combustíveis fósseis no planeta; (d) as políticas adotadas devem ter uma perspectiva de longo prazo, supra-partidárias, sob pena de não serem eficazes; (e) embora se trate de um problema global, iniciativas locais podem ser bastante eficazes; (f) são os países desenvolvidos que devem adotar as políticas mais amplas voltadas à redução das emissões de gases de efeito estufa, com apoio no princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada.
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